15 de setembro de 2011

A minha cicatriz

Durante quase toda a minha vida trouxe comigo uma marca delicada. Marca apenas, porque é através dela que está escrita uma parte da minha história que minhas lembranças simplesmente não alcançam. Bom e ruim. Bom porque o momento era delicado para todo mundo. Ruim porque hoje, como uma metida a escritora que sou, gostaria de contar tudo o que senti nos tempos que sucederam o acidente.
Eu sei pouca coisa sobre o que aconteceu. Pergunto de vez em quando, me contam, esqueço. Pergunto, choram, me contam, e eu esqueço. O que sei é o mesmo que saiu no jornal. Insisto em não saber mais e nem sei porque. Nos acidentamos, eu e minha mãe, há 18 anos atrás, de carro, na estrada que liga o centro da cidade ao bairro onde moro. Engraçado, mas acho até que acertei o mês, foi em setembro. Ou não foi? Só falta ter acertado o dia também. Qualquer dia desses eu volto a perguntar.

Ficamos bem. É assim que eu gosto de pensar. E estamos muito bem até hoje. Poucas coisas mudaram na minha vida por causa daquele dia. Pelo menos é o que eu penso. Acho até que nada mudou. Para uma criança de quatro anos é difícil tirar lição de algo tão brutal. Para minha mãe deve ter sido bem mais difícil. Foi, certamente. E para o meu pai, e minhas avós e todos os nossos amigos e familiares.

O que lembro é de passear com meu dindo nos jardins do hospital e de ver peixes num laguinho. Não sei se isso aconteceu uma vez ou todos os dias, mas posso ver esse momento se fechar os olhos.


Lembro de um médico me pedindo para virar a cabeça porque, meu pai estava na porta e queria me ver. Mas ele só ia entrar se eu me virasse. Disso eu lembro bem, chorei, chorei, senti muita dor e, quando finalmente consegui me virar, meu pai não estava lá. Artimanhas médicas difíceis de serem esquecidas.


Lembro da minha mãe tocando violão. Mas nem sei se foi mesmo no hospital, ou foi em casa. Lembro até da música: “Eu tive um sonho, vou te contar, eu me atirava do oitavo andar. E era preciso fechar os olhos pra não morrer e não se machucar”

Lembro de ir para a janela do quarto e ver todos os meus primos, tios e tias me abanando lá de baixo. E eu, que sou contra guardar coisas que já não nos servem, não consigo me livrar do meu ratinho de pelúcia que ganhei por aqueles dias.

O presente mais genial foi uma bola de vôlei com a assinatura de todos os alunos do meu pai e votos de que ficássemos bem. Odeio não saber quem são esses alunos e nunca ter agradecido.

Eu lembro do dia em que saímos do hospital. Fomos para a casa da minha avó, Norma, e eu ajudei ela a descascar morangos. Lembro disso sempre que lavo morango, sempre, até hoje. Esse dia é o mais nítido para mim.


Eu e a vó Norma descascando morango


Lembro de enrolar uma toalha na cabeça para fingir que meus cabelos ainda eram longos. Lembro também que, depois de muitos anos, ainda tinha um caco de vidro sob a minha pele, que o corpo expulsou naturalmente.

Desse tempo e dessas vagas lembranças sobraram marcas. Que quando me olho no espelho muitas vezes desaparecem. Elas, sinceramente, nunca me atrapalharam em nada. Não me deixam mais feia, ou mais bonita. Não me fazem melhor ou pior. Nada. Acho que como as forças supremas sabiam a esquecida que me tornariam, resolveram, de alguma forma, me fazer lembrar, pelo menos de vez em quando, o quanto a vida é fina.

O melhor de lembrar disso tudo, é que, apesar das marcas aparentes, nem eu nem minha mãe guardamos marcas emocionais, que para mim, são as mais difíceis de serem apagadas. Não ficamos traumatizadas, não temos medo da morte por conta do que nos aconteceu, não guardamos dores, não ficamos com sequelas.

Somos duas pessoas fortes e que ainda tinham muito para viver. Só isso.



"É o que devemos fazer, não temos que ter medo. É o que devemos fazer. Não deixe de cruzar o seu olhar com o meu eu vou jogar meu corpo em cima do seu"



Por Manoela Soares (@manunsoares)

5 comentários:

  1. Foi dia 3 de setembro. Quando me levaram, uns 7 dias depois, para o hospital onde tu estavas, me perguntaste: Mãe, por que?
    E eu te disse: Porque Deus sabia que nós teríamos a força necessária para superar tudo aquilo. Éramos fortes o suficiente.
    Não falo quase porque pouco me lembro.
    Quisera eu ter conseguido jogar o meu corpo em cima do teu, como um manto protetor. Não consegui. Me dei conta de que nunca conseguirei.
    Mas nunca deixarei de cruzar o meu olhar com o teu...

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  2. As cicatrizes emocionais são sempre mais difíceis, as marcas só ficam para mostrarem tudo aquilo que de alguma forma nos transformou e nos transforma naquilo que somos. Acho lindo tu conseguir expressar tão bem algo tão pessoal para ti. Parece que daquilo que lembras já basta pra saber mesmo que a vida é fina - e bela.
    bjinho, Manu ^^

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  3. ah e esqueci de comentar! Tu é muuito igual a tua mãe!! hehe

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  4. dois comentários possíveis a respeito desse post:

    1. AQUELE MÉDICO FOI UM MONSTRO!
    2. tu tá cada vez melhor, gorda! cada texto, cada construção, absolutamente lindo..

    e como eu fico orgulhosa dessa minha amiga!

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  5. Achei melhor parar a leitura pra não chorar no trabalho. Muita saudade das personagens dessa "história". Depois vou ler com calma e comento com vocês. beijão!

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